TOBIAS, CAP. 1
Tobit, da tribo e da cidade de Neftali (situada na Galiléia superior, acima de Naasson, atrás do caminho do ocidente, tendo à esquerda a cidade de Sefet), foi levado para o cativeiro no tempo de Salmanasar, rei dos assírios. Embora cativo, ele não abandonou o caminho da verdade.Tudo aquilo, de que podia dispor, distribuía cada dia a seus irmãos de raça, que partilhavam com ele sua sorte de cativo. Embora fosse ele o mais jovem da tribo de Neftali, seu proceder nada tinha de pueril. Por isso, enquanto todos eles iam adorar os bezerros de ouro que o rei de Israel, Jeroboão, tinha feito, só ele fugia da companhia de todos e dirigia-se ao templo do Senhor em Jerusalém, onde adorava o Senhor Deus de Israel, oferecendo fielmente as primícias e os dízimos de todos os seus bens.De três em três anos, dava aos prosélitos e aos estrangeiros todo o seu dízimo. Esta e outras práticas semelhantes da lei de Deus, tinha observado desde a sua infância. Quando se tornou adulto, desposou uma mulher de sua tribo, chamada Ana, da qual teve um filho, a quem deu o nome de Tobias. Ensinou-lhe desde a sua mais tenra idade a temer a Deus e a se abster de todo o pecado.Desse modo, quando chegou com sua mulher e seu filho, como cativo, no meio de sua tribo, à cidade de Nínive, embora todos os outros comessem dos alimentos dos pagãos, guardou sua alma pura, e jamais contraiu mancha alguma com seus alimentos.E porque ele conservava com todo o seu coração a lembrança de Deus, Deus tornou-o simpático ao rei Salmanasar, que o autorizou a ir aonde quisesse, e a fazer o que quer que lhe agradasse. Ele ia, pois, visitar todos os deportados e dava-lhes conselhos salutares. Foi um dia a Ragés, cidade da Média, com dez talentos de prata que o rei lhe tinha dado. Encontrando entre a multidão dos seus compatriotas um homem de sua tribo, chamado Gabael, o qual se achava em dificuldades, deu-lhe a sobredita quantia de prata, mediante um recibo. Passou o tempo; Salmanasar morreu e Senaquerib, seu filho, sucedeu-lhe no trono. Ora, Senaquerib odiava os israelitas. Tobit ia diariamente visitar toda a sua parentela, consolava-a e distribuía dos seus bens a cada um, segundo as suas posses.Alimentava os famintos, vestia os nus, e, com uma solicitude toda particular, sepultava os defuntos e os que tinham sido mortos. Quando o rei Senaquerib, fugindo da Judéia ao castigo com que Deus o ferira por suas blasfêmias, mandou assassinar, na sua ira, um grande número de israelitas, Tobit sepultou os seus cadáveres.Denunciaram-no ao rei, que o mandou matar e confiscou todos os seus bens. Tobit, porém, despojado de tudo, fugiu com seu filho e sua mulher e, como tinha muitos amigos, conseguiu permanecer oculto.Ora, quarenta e cinco dias depois, o rei foi assassinado por seus filhos, e Tobit voltou para a sua casa; e foram-lhe restituídos todos os seus bens.
TOBIAS, CAP. 2
Algum tempo depois, num dia de festa religiosa, foi preparado um grande banquete na casa de Tobit. Ele disse então ao seu filho: Vai buscar alguns homens piedosos de nossa tribo, para comerem conosco. Ele saiu, mas logo voltou, anunciando ao pai que um dos filhos de Israel jazia degolado na praça. Tobit levantou-se imediatamente da mesa, sem nada haver comido, e foi aonde estava o cadáver. Tomou-o e levou-o clandestinamente para a sua casa, a fim de sepultá-lo com cuidado depois do sol posto.Tendo escondido o cadáver, começou a comer com pranto e tremor, lembrando-se do oráculo que o Senhor tinha pronunciado pela boca do profeta Amós: Vossas festas mudar-se-ão em luto e lamentações (Am 8,10). Quando o sol se pôs, ele foi e o sepultou.Seus vizinhos criticavam-no unanimemente. Já uma vez ordenaram que te matassem, precisamente por isso, e mal escapaste dessa sentença de morte, recomeças a enterrar os cadáveres! Mas Tobit temia mais a Deus que ao rei, e continuava a levar para a sua casa os corpos daqueles que eram assassinados, onde os escondia e os inumava durante a noite.Ora, aconteceu que um dia, cansado desse trabalho, voltou para a sua casa e deitou-se junto à parede onde adormeceu.Enquanto dormia, caiu-lhe de um ninho de andorinhas esterco quente nos olhos, e ele tornou-se cego.Deus permitiu que lhe acontecesse essa prova, para que a sua paciência, como a do santo homem Jó, servisse de exemplo à posteridade.Como havia sempre temido a Deus, desde a sua infância, e guardado seus mandamentos, ele não se afligiu (nem murmurou) contra Deus por ter sido atingido pela cegueira.Mas perseverou firme no temor de Deus, e continuou a dar-lhe graças em todos os dias de sua vida.Assim como o bem-aventurado Jó foi insultado por outros chefes, assim seus parentes e amigos escarneciam de seu comportamento: Onde está, diziam eles, essa esperança por cujo amor deste esmolas e sepultaste os mortos? Porém Tobit repreendia-os, dizendo: Não faleis assim; somos filhos dos santos (patriarcas), e esperamos aquela vida que Deus há de dar aos que não perdem jamais a sua confiança nele. Ora, Ana, sua mulher, ia todos os dias tecer, e trazia o que ela ganhava com o trabalho de suas mãos. Foi assim que, tendo trazido para casa um cabrito que recebera (como gratificação), seu marido ouviu-o balir e disse: Vê que ele não tenha sido roubado; restitui-o ao seu proprietário, porque não nos é permitido comer, e nem mesmo tocar, o que foi roubado.Ao que lhe respondeu sua mulher com indignação: Tua esperança é manifestamente vã; agora tuas esmolas mostram bem o que valem! Com estas e outras palavras semelhantes ela censurava-o duramente.
TOBIAS, CAP. 3
Tobit, então, suspirando em meio de suas lágrimas, pôs-se a orar: Vós sois justo, Senhor! Vossos juízos são cheios de eqüidade, e vossa conduta é toda misericórdia, verdade e justiça. Lembrai-vos, pois, de mim, Senhor! Não me castigueis por meus pecados e não guardeis a memória de minhas ofensas, nem das de meus antepassados.Se fomos entregues à pilhagem, ao cativeiro e à morte, e se nos temos tornado objeto de mofa e de riso para os pagãos entre os quais nos dispersastes, é porque não obedecemos às vossas leis. Agora os vossos castigos são grandes, porque não procedemos segundo os vossos preceitos e não temos sido leais para convosco. Tratai-me, pois, ó Senhor, como vos aprouver; mas recebei a minha alma em paz, porque me é melhor morrer que viver. Aconteceu que, precisamente naquele dia, Sara, filha de Raguel, em Ecbátana na Média, teve também de suportar os ultrajes de uma serva de seu pai. Ela tinha sido dada sucessivamente a sete maridos. Mas logo que eles se aproximavam dela, um demônio chamado Asmodeu os matava. Tendo Sara repreendido a jovem criada por alguma falta, esta respondeu-lhe: Não vejamos jamais filho nem filha nascidos de ti sobre a terra! Foste tu que assassinaste os teus maridos. Queres porventura matar-me, como mataste todos os sete? Ouvindo isso, Sara subiu ao seu quarto e aí ficou três dias completos, sem comer nem beber. E, orando com fervor, ela suplicava a Deus, chorando, que a livrasse dessa humilhação. Ao terceiro dia, acabou sua oração, bendizendo o Senhor desta forma: Deus de nossos pais, que vosso nome seja bendito. Vós, que depois de vos irardes, usais de misericórdia, e no meio da tribulação perdoais os pecados aos que vos invocam. Volto-me para vós, ó Senhor; para vós levanto os meus olhos. Rogo-vos, Senhor, que me livreis dos laços deste opróbrio, ou então que me tireis de sobre a terra! Vós sabeis que eu nunca desejei homem algum, e que guardei minha alma pura de todo o mau desejo. Nunca freqüentei lugares de prazer nem tive comércio com pessoas levianas. E se consenti em casar-me, foi por vosso temor e não por paixão. Foi, sem dúvida, porque eu não era digna deles; ou talvez não eram eles dignos de mim; ou então me destinastes a outro homem. Não está nas mãos do homem penetrar os vossos desígnios. Mas todo aquele que vos honra tem a certeza de que sua vida, se for provada, será coroada; que depois da tribulação haverá a libertação, e que, se houver castigo, haverá também acesso à vossa misericórdia. Porque vós não vos comprazeis em nossa perda: após a tempestade, mandais a bonança; depois das lágrimas e dos gemidos, derramais a alegria. Ó Deus de Israel, que o vosso nome seja eternamente bendito!Estas duas orações foram ouvidas ao mesmo tempo, diante da glória do Deus Altíssimo;e um santo anjo do Senhor, Rafael, foi enviado para curar Tobit e Sara, cujas preces tinham sido simultaneamente dirigidas ao Senhor.
Tobit, julgando que sua prece tinha sido atendida e que ia morrer, chamou junto de si o seu filho e disse-lhe: Ouve, meu filho, as palavras que te vou dizer, e faze que elas sejam em teu coração um sólido fundamento. Quando Deus tiver recebido a minha alma, darás sepultura ao meu corpo. Honrarás tua mãe todos os dias de tua vida, porque te deves lembrar de quantos perigos ela passou por tua causa (quando te trazia em seu seio). Quando ela, por sua vez, tiver cessado de viver, tu a enterrarás junto de mim. Quanto a ti, conserva sempre em teu coração o pensamento de Deus; guarda-te de consentir jamais no pecado, e de negligenciar os preceitos do Senhor, nosso Deus. Dá esmola dos teus bens, e não te desvies de nenhum pobre, pois, assim fazendo, Deus tampouco se desviará de ti. Sê misericordioso segundo as tuas posses. Se tiveres muito, dá abundantemente; se tiveres pouco, dá desse pouco de bom coração. Assim acumularás uma boa recompensa para o dia da necessidade: porque a esmola livra do pecado e da morte, e preserva a alma de cair nas trevas. A esmola será para todos os que a praticam um motivo de grande confiança diante do Deus Altíssimo. Guarda-te, meu filho, de toda a fornicação: fora de tua mulher, não te autorizes jamais um comércio criminoso. Nunca permitas que o orgulho domine o teu espírito ou tuas palavras, porque ele é a origem de todo o mal. A todo o que fizer para ti um trabalho, paga o seu salário na mesma hora: que a paga de teu operário não fique um instante em teu poder. Guarda-te de jamais fazer a outrem o que não quererias que te fosse feito. Come o teu pão em companhia dos pobres e dos indigentes; cobre com as tuas próprias vestes os que estiverem desprovidos delas. Põe o teu pão e o teu vinho sobre a sepultura do justo; mas não o comas, nem o bebas em companhia dos pecadores. Busca sempre conselho junto ao sábio. Bendize a Deus em todo o tempo, e pede-lhe que dirija os teus passos, de modo que os teus planos estejam sempre de acordo com a sua vontade. Faço-te saber também, meu filho, que quando eras ainda pequenino, emprestei a Gabael de Ragés, cidade da Média, uma soma de dez talentos de prata, cujo recibo tenho guardado comigo. Procura, pois, um meio de ir até lá para receber o sobredito peso de prata, restituindo-lhe o recibo. Procura viver sem cuidados, meu filho. Levamos, é certo, uma vida pobre, mas se temermos a Deus, se evitarmos todo o pecado e vivermos honestamente, grande será a nossa riqueza.
TOBIAS, CAP. 5
Então Tobias respondeu a seu pai: Tudo o que me ordenaste, eu o farei, meu pai.Mas estou realmente sem saber como ir buscar esse dinheiro. Gabael não me conhece, e eu tampouco o conheço; que sinal lhe hei de dar? Não conheço nem mesmo o caminho por onde ir a essa terra. Seu pai disse-lhe: Tenho comigo o seu recibo; bastará que lho mostres, para que ele te devolva imediatamente o dinheiro. Vai procurar um homem de confiança que te possa acompanhar, mediante uma retribuição. É preciso que recebas esse dinheiro enquanto ainda estou vivo. Apenas saíra, Tobias encontrou um jovem de belo aspecto, equipado como para uma viagem. Sem saber que se tratava de um anjo de Deus, ele o saudou e disse-lhe: De onde és tu, ó bom jovem? Ele respondeu: Sou israelita. Tobias perguntou-lhe: Conheces porventura o caminho para a Média? Oh, muito!, respondeu ele. Tenho percorrido freqüentemente esse caminho. Hospedei-me em casa de Gabael, nosso compatriota que habita em Ragés, na Média, cidade que está situada na montanha de Ecbátana. Tobias disse-lhe: Rogo-te que esperes por mim, enquanto vou anunciar isto a meu pai. Tendo Tobias entrado e contado o sucedido ao seu pai, este ficou muito admirado e pediu que fizesse entrar o jovem. Ele entrou e saudou a Tobit: A felicidade esteja contigo para sempre! Ao que Tobit respondeu: Que felicidade posso eu ter ainda? Estou nas trevas, sem poder ver a luz do céu. O jovem replicou-lhe: Tem ânimo, porque é fácil a Deus curar-te! Tobit disse-lhe: É verdade que poderás conduzir meu filho à casa de Gabael, em Ragés, na Média? Quando voltares, eu te retribuirei por isso. Então o anjo disse-lhe: Eu o levarei até lá e to reconduzirei. Tobit então perguntou-lhe: Rogo-te que me digas de que família e de que tribo és tu? O anjo respondeu: Que é que procuras: a raça do servo, ou o próprio servo para acompanhar teu filho? Mas, para tranqüilizar-te: eu sou Azarias, filho do grande Ananias. És de família distinta, respondeu Tobit. Rogo-te que não me queiras mal por ter querido conhecer tua origem. O anjo então disse: Conduzirei o teu filho são e salvo, e to trarei de novo são e salvo. Tobit respondeu: Boa viagem! Que Deus esteja em vosso caminho, e que o seu anjo vos acompanhe. Fizeram em seguida suas bagagens, Tobias despediu-se de seu pai e de sua mãe e os dois viajantes partiram. Depois que partiram, sua mãe pôs-se a chorar: Tiraste-nos, disse ela, o bordão de nossa velhice, e o apartaste de nós. Prouvera a Deus que nunca tivesse havido esse dinheiro pelo qual o enviaste. O pouco que temos nos bastava; a nossa riqueza era a vista de nosso filho. Tobit respondeu-lhe: Não chores; nosso filho chegará são e salvo, e voltará também são e salvo para a nossa companhia; tu o verás com os teus olhos. Estou certo de que um bom anjo de Deus o acompanhará e disporá solicitamente tudo o que lhe diz respeito, de modo que ele tenha a alegria de voltar para nós. Ouvindo isso, sua mãe cessou de chorar e calou-se.
TOBIAS, CAP. 6
Tobias partiu, pois, seguido de seu cão, e deteve-se na primeira parada à beira do rio Tigre. Descendo ao rio para lavar os pés, eis que um enorme peixe se lançou sobre ele para devorá-lo. Aterrorizado, Tobias gritou, dizendo: Senhor, ele lança-se sobre mim. O anjo disse-lhe: Pega-o pelas guelras e puxa-o para ti. Tobias assim o fez. Arrastou o peixe para a terra, o qual se pôs a saltar aos seus pés. O anjo então disse-lhe: Abre-o, e guarda o coração, o fel e o fígado, que servirão para remédios muito eficazes. Ele assim o fez. A seguir ele assou uma parte da carne do peixe, que levaram consigo pelo caminho. Salgaram o resto, para que lhes bastasse até chegarem a Ragés, na Média. Entretanto, Tobias interrogou o anjo: Azarias, meu irmão, peço-te que me digas qual é a virtude curativa dessas partes do peixe que me mandaste guardar. O anjo respondeu-lhe: Se puseres um pedaço do coração sobre brasas, a sua fumaça expulsará toda espécie de mau espírito, tanto do homem como da mulher, e impedirá que ele volte de novo a eles. Quanto ao fel, pode-se fazer com ele um ungüento para os olhos que têm uma belida, porque ele tem a propriedade de curar. Em seguida Tobias disse-lhe: Onde queres que pousemos? Há aqui, respondeu o anjo, um homem de tua tribo e de tua família, chamado Raguel, que tem uma filha chamada Sara; além dela não tem mais filha. Todos os seus bens te devem pertencer: mas é preciso que a recebas por mulher. Pede-a, pois, ao seu pai, e ele ta dará por mulher. .Tobias replicou: Ouvi dizer que ela já teve sete maridos, e que todos morreram. Diz-se mesmo que foi um demônio que os matou, por isso eu temo que o mesmo venha a me acontecer, a mim que sou filho único, e desse modo faça descer lamentavelmente a velhice de meus pais à habitação dos mortos. O anjo respondeu-lhe: Ouve-me, e eu te mostrarei sobre quem o demônio tem poder: são os que se casam, banindo Deus de seu coração e de seu pensamento, e se entregam à sua paixão como o cavalo e o burro, que não têm entendimento: sobre estes o demônio tem poder. Tu, porém, quando te casares e entrares na câmara nupcial, viverás com ela em castidade durante três dias, e não vos ocupareis de outra coisa senão de orar juntos. Na primeira noite, queimarás o fígado do peixe, e será posto em fuga o demônio. Na segunda noite, serás admitido na sociedade dos santos patriarcas. Na terceira noite, receberás a bênção que vos dará filhos cheios de saúde. Passada esta terceira noite, aproximar-te-ás da jovem no temor ao Senhor, mais com o desejo de ter filhos que o ímpeto da paixão. Obterás assim para os teus filhos a bênção prometida à raça de Abraão.
Chegaram, pois à casa de Raguel, que os recebeu cordialmente. Vendo Tobias, Raguel disse a Edna, sua mulher: Como este jovem é parecido com meu primo. Dito isto, perguntou De onde viestes, ó jovens? Eles responderam: Somos da tribo de Neftali, dos deportados de Nínive. Raguel prosseguiu: Conheceis porventura o meu primo Tobit? Certamente, responderam. E como Raguel começasse a elogiar Tobit, o anjo disse-lhe: Esse Tobit de que falas é o pai deste jovem Raguel lançou-se então ao pescoço de Tobias, beijou-o com lágrimas, e disse: Abençoado sejas, meu filho, porque és filho de um homem de bem! Edna, sua mulher, e Sara, sua filha, tinham também os olhos cheios de lágrimas. Depois que conversaram, Raguel mandou matar um carneiro para preparar um jantar. E quando lhes rogava que tomassem lugar à mesa, Tobias disse-lhe: Não comerei nem beberei aqui hoje, antes que me tenhas prometido conceder o que te vou pedir: dá-me Sara, tua filha, (por mulher). Estas palavras encheram Raguel de espanto, pensando no que tinha acontecido aos sete maridos que se tinham aproximado dela, e começou a temer que tal desgraça se repetisse mais uma vez. E como ele hesitasse em dar uma resposta a Tobias, o anjo disse-lhe: Não temas dar-lhe tua filha, porque é deste piedoso servo de Deus que ela deve ser mulher. Por isso nenhum outro pôde tê-la. Então Raguel disse: Não tenho mais dúvidas de que Deus admitiu em sua presença minhas lágrimas. Estou persuadido de que ele vos fez vir à minha casa unicamente para que minha filha desposasse um seu parente, segundo a lei de Moisés. Não temas: eu ta hei de dar. E, tomando a mão direita de sua filha, pô-la na de Tobias, dizendo: Que o Deus de Abraão, o Deus de lsaac, o Deus de Jacó esteja convosco; que ele vos una e derrame sobre vós a sua bênção. Tomou em seguida o papel, e redigiram o ato do matrimônio. E celebraram alegremente uma festa, agradecendo a Deus. Raguel chamou então sua mulher e mandou-lhe que preparasse outro aposento. Ela introduziu ali Sara, sua filha, e esta se pôs a chorar. Mas ela disse-lhe: O Senhor do céu te encha de alegria pelos males que tens sofrido.
Depois do jantar, introduziram o jovem no aposento de Sara. E Tobias, fiel às indicações do anjo, tirou do seu alforje uma parte do fígado e o pôs sobre brasas acesas. Nesse momento, o anjo Rafael tomou o demônio e prendeu-o no deserto do Alto Egito. Então Tobias encorajou a jovem com estas palavras: Levanta-te, Sara, e roguemos a Deus, hoje, amanhã e depois de amanhã. Estaremos unidos a Deus durante essas três noites. Depois da terceira noite consumaremos nossa união; porque somos filhos dos santos (patriarcas), e não nos devemos casar como os pagãos que não conhecem a Deus. Levantaram-se, pois, ambos, e oraram juntos fervorosamente para que lhes fosse conservada a vida. Tobias disse: Senhor Deus de nossos pais, bendigam-vos os céus, a terra, o mar, as fontes e os rios, com todas as criaturas que neles existem. Vós fizestes Adão do limo da terra, e destes-lhe Eva por companheira. Ora, vós sabeis, ó Senhor, que não é para satisfazer a minha paixão que recebo a minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade, pela qual o vosso nome seja eternamente bendito. E Sara acrescentou: Tende piedade de nós, Senhor; tende piedade de nós, e fazei que cheguemos juntos a uma ditosa velhice! Ora, ao cantar do galo, Raguel chamou os seus criados e foram juntos cavar uma sepultura. Quem sabe, dizia ele, se não aconteceu a esse o mesmo que aos outros sete homens que se aproximaram dela? Cavada a fossa, voltou para junto de sua mulher e disse: Manda uma de tuas escravas ver se ele morreu, a fim de que eu possa enterrá-lo antes de clarear o dia. Ela o fez. E a serva, tendo entrado no aposento, encontrou-os bem vivos, dormindo juntos. Ela voltou e deu essa boa nova; e Raguel com sua mulher louvaram o Senhor, dizendo: Nós vos bendizemos, Senhor Deus de Israel, porque não se realizou o que temíamos. Usastes conosco de vossa misericórdia, expulsando para longe de nós o inimigo que nos perseguia, e tivestes piedade de dois filhos únicos. Fazei, ó Senhor, que eles vos bendigam sempre mais, e vos ofereçam um sacrifício de louvor pela sua conservação, a fim de que todas as nações pagãs conheçam que vós sois o único Deus de toda a terra. Raguel ordenou imediatamente aos seus criados que enchessem de novo, antes que clareasse o dia, a cova que haviam feito. Disse à sua mulher que aprontasse um banquete e preparasse todos os víveres necessários aos viajantes. Mandou também matar duas vacas gordas e quatro carneiros, destinados a um festim para todos os seus vizinhos e amigos. E instou com Tobias que ficasse com ele duas semanas. Presenteou Tobias com a metade de seus bens, e redigiu um documento estipulando que a outra metade se tornaria também, depois de sua morte, propriedade de Tobias.
Tobias chamou então a si o anjo, que ele julgava ser um homem, e disse-lhe: Azarias, meu irmão, peço-te que me ouças. Ainda que eu me fizesse teu escravo, não seria isso uma retribuição digna por teus cuidados. Não obstante, vou pedir-te ainda que tomes contigo cavalos e servos e vás à casa de Gabael, em Ragés, na Média. Devolve-lhe o seu recibo e recebe o dinheiro. Convida-o também para o meu casamento. Bem sabes que meu pai conta os dias; se eu tardar um dia mais, ele sofrerá com isso. Vês, por outro lado, como Raguel insistiu em que eu me demorasse aqui, e não lho posso recusar. Rafael tomou então quatro servos de Raguel, e dois camelos, e partiu para Ragés, na Média. Encontrando Gabael, entregou-lhe o recibo e recebeu dele todo o dinheiro. Contou-lhe toda a aventura de Tobias e fê-lo vir consigo às núpcias. Tobias estava à mesa, quando Gabael entrou na casa de Raguel. Lançaram-se nos braços um do outro, e Gabael louvava a Deus com lágrimas (de alegria). Que o Deus de Israel te abençoe, disse ele, porque és filho de um homem de bem, justo, piedoso e esmoler. Abençoe também a tua mulher e os vossos pais; possais ver os vossos filhos e os filhos de vossos filhos, até a terceira e a quarta gerações! Bendita seja a vossa raça pelo Deus de Israel que reina em toda a eternidade! Amém, responderam eles. E todos se puseram à mesa. E foi no temor do Senhor que celebraram o festim das núpcias.
O casamento de Tobias tinha retardado a sua volta. Seu pai, muito inquieto, dizia: Por que será que meu filho tarda tanto? Por que se demora lá? Teria Gabael porventura falecido, de sorte que não haveria ninguém para restituir o dinheiro? Ele entristeceu-se extremamente com isso, assim como Ana, sua mulher, e ambos se puseram a chorar, porque seu filho não voltava no tempo previsto. Sua mãe, principalmente, derramava lágrimas inesgotáveis, e dizia: Ai, ai, meu filho! Por que te mandamos lá? Tu que eras a luz de nossos olhos, o bordão de nossa velhice, a consolação de nossa vida e a esperança de nossa raça! Nós, que em ti só tínhamos tudo, não te devíamos ter deixado ir para longe de nós. Tobit dizia-lhe: Cala-te, não te aflijas! Nosso filho está passando bem; aquele homem com quem nós o mandamos é um homem de confiança. Mas ela continuava inconsolável: todos os dias ela saía para fora, olhava para todos os lados, e corria por todos os caminhos, por onde poderia voltar o filho, a fim de vê-lo ao longe, se fosse possível. Entretanto, Raguel dizia ao seu genro: Fica aqui, mandarei notícias a Tobit, teu pai, a respeito de tua saúde. Mas Tobias disse-lhe: Sei que meu pai e minha mãe contam os dias e que se acham em grande tormento. Raguel insistiu ainda, apresentando muitas razões, mas Tobias não quis ouvi-lo. Então entregou-lhe Sara com a metade de seus bens em servos, servas, rebanhos, camelos, vacas, e em grande soma de dinheiro. Despediu-o cheio de saúde e alegria, dizendo-lhe: Que o santo anjo do Senhor vos acompanhe pelo caminho, e vos conduza sãos e salvos. Faço votos de que encontreis tudo em ordem em casa de vossos pais, e que eu possa ver os vossos filhos antes de morrer! Os pais beijaram sua filha e deixaram-na partir, recomendando-lhe que honrasse seus sogros, amasse o seu marido, educasse bem a sua família e governasse a sua casa, conservando-se ela mesma irrepreensível.
De regresso, chegaram no décimo primeiro dia de viagem a Caserim, que está a meio caminho na direção de Nínive. O anjo disse então: Tobias, meu irmão, tu sabes em que estado deixaste o teu pai. Se for do teu agrado, poderíamos tomar a dianteira, deixando a tua mulher, os servos e os rebanhos seguirem devagar pelo caminho. Tendo Tobias concordado com esse parecer, Rafael disse-lhe: Leva contigo o fel do peixe, porque vais precisar dele. Tomou, pois, Tobias o fel e partiram. Entretanto, Ana ia todos os dias assentar-se perto do caminho, no cimo de uma colina, de onde podia ver ao longe. Ela espreitava ali a volta de seu filho, quando o viu de longe que voltava e o reconheceu. Correu ao seu marido e disse-lhe: Eis que aí vem o teu filho! Ora, Rafael tinha dito a Tobias: Logo que entrares em tua casa, adorarás o Senhor teu Deus e dar-lhe-ás graças. Irás em seguida beijar teu pai, e pôr-lhe-ás imediatamente nos olhos o fel do peixe que tens contigo. Sabe que seus olhos se abrirão instantaneamente e que teu pai verá a luz do céu. E, vendo-te, ficará cheio de alegria. O cão, que os tinha acompanhado durante a viagem, correu então adiante como um mensageiro, e mostrava o seu contentamento fazendo festas e abanando a cauda. O pai cego levantou-se e pôs-se a correr, tropeçando. Dando então a mão a um criado, foi ao encontro de seu filho. Abraçou-o e beijou-o, fazendo o mesmo sua mulher, e ambos começaram a chorar de alegria. Só se assentaram depois de terem adorado e agradecido a Deus. Tobias tomou então o fel do peixe e pô-lo nos olhos de seu pai. Depois de ter esperado cerca de meia hora, começou a sair-lhe dos olhos uma belida branca como a membrana de um ovo. Tobias tomou-a e a arrancou dos olhos de seu pai, o qual recobrou instantaneamente a vista. E louvaram a Deus, ele, sua mulher e todos os que o conheciam. Bendigo-vos, Senhor Deus de Israel, dizia ele, porque depois de me terdes provado, me salvastes: eis que vejo o meu filho Tobias! Sete dias depois, chegou também Sara, mulher de seu filho, com todos os seus servos, em boa saúde, com os rebanhos, os camelos, o grande dote da esposa, e mais o dinheiro recebido de Gabael. Tobias contou a seus pais todos os benefícios que Deus lhe tinha feito por intermédio de seu guia. Chegaram também Aquior e Nabat, primos de Tobit, felizes de poderem congratular-se com ele pelos benefícios que Deus lhe tinha prodigalizado. Durante sete dias houve festa e grande regozijo.
Então Tobit chamou seu filho e disse-lhe: Que havemos nós de dar a esse santo homem que te acompanhou? Meu pai, respondeu ele, que gratificação lhe havemos de dar? Que presente poderá igualar os seus benefícios? Ele levou-me e trouxe-me em boa saúde; foi receber o dinheiro de Gabael; fez-me ter uma mulher e afugentou dela o demônio; encheu de alegria os seus pais; livrou-me de ser devorado pelo peixe, e fez-te rever a luz do céu; enfim, ele cumulou-nos de toda a sorte de benefícios. Que presente poderia igualar a tudo isso? Rogo-te, meu pai, que lhe peças se digne aceitar a metade de tudo o que trouxemos. Chamaram-no, pois, o pai e o filho, e, tomando-o à parte, rogaram-lhe que aceitasse a metade de tudo o que tinham trazido. Então ele falou-lhes discretamente: Bendizei o Deus do céu, e dai-lhe glória diante de todo o ser vivente, porque ele usou de misericórdia para convosco. Se é bom conservar escondido o segredo do rei, é coisa louvável revelar e publicar as obras de Deus. Boa coisa é a oração acompanhada de jejum, e a esmola é preferível aos tesouros de ouro escondidos, porque a esmola livra da morte: ela apaga os pecados e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna; aqueles, porém, que praticam a injustiça e o pecado são os seus próprios inimigos. Vou descobrir-vos a verdade, sem nada vos ocultar. Quando tu oravas com lágrimas e enterravas os mortos, quando deixavas a tua refeição e ias ocultar os mortos em tua casa durante o dia, para sepultá-los quando viesse a noite, eu apresentava as tuas orações ao Senhor. Mas porque eras agradável ao Senhor, foi preciso que a tentação te provasse. Agora o Senhor enviou-me para curar-te e livrar do demônio Sara, mulher de teu filho. Eu sou o anjo Rafael, um dos sete que assistimos na presença do Senhor. Ao ouvir estas palavras, eles ficaram fora de si, e, tremendo, prostraram-se com o rosto por terra. Mas o anjo disse-lhes: A paz seja convosco: não temais. Quando eu estava convosco, eu o estava por vontade de Deus: rendei-lhe graças, pois, com cânticos de louvor. Parecia-vos que eu comia e bebia convosco, mas o meu alimento é um manjar invisível, e minha bebida não pode ser vista pelos homens. É chegado o tempo de voltar para aquele que me enviou: vós, porém, bendizei a Deus e publicai todas as suas maravilhas. Acabando de dizer estas palavras, desapareceu diante deles, e eles não viram mais nada. Durante três horas permaneceram prostrados por terra, bendizendo a Deus. Depois levantaram-se e publicaram todas essas maravilhas.
Tobit tomou, então, a palavra e, num transporte de alegria, escreveu esta prece: Sois grande, Senhor, na eternidade, vosso reino estende-se a todos os séculos. Porque vós provais e, em seguida, salvais. Conduzis a profundos abismos e deles tirais; e não há quem possa escapar à vossa mão. Celebrai o Senhor, filhos de Israel. Louvai-o em presença das nações. Porque, se ele vos dispersou entre povos que o não conhecem, foi para que publiqueis as suas maravilhas e lhes façais reconhecer que não há outro Deus onipotente senão ele. Castigou-nos por causa das nossas iniqüidades, mas nos salvará por sua misericórdia. Considerai, agora, o que fez por nós, e bendizei-o com temor e tremor; por vosso comportamento, glorificai o rei dos séculos. Quanto a mim, louvá-lo-ei na terra do meu cativeiro, porque manifestou sua majestade sobre um povo criminoso. Convertei-vos, pecadores, e praticai a justiça diante de Deus, na confiança que vos fará misericórdia. Nele me alegrarei de todo o coração. Dai graças ao Senhor, vós todos, seus eleitos; celebrai dias de alegria e rendei-lhe louvores. Jerusalém, cidade santa! Deus te castigou por teu mau procedimento. Confessa a Deus como convém e louva o rei dos séculos, para que ele reedifique o teu santuário. Reúna em ti os que foram deportados, e possas alegrar-te sem fim! Hás de refulgir qual esplêndida luz, e todos os povos da terra te venerarão. Nações de longe virão a ti, com presentes, adorar o Senhor em teus muros, e considerarão o teu solo como um santuário. Porque em teu recinto invocarão o grande nome. Maldito seja quem te desprezar; desonrado, quem te caluniar; bendito seja quem te reconstruir! Alegrar-te-ás nos teus filhos, porque serão todos abençoados, e se reunirão junto do Senhor. Ditosos todos os que te amam: na tua paz encontrarão sua alegria. Ó minha alma, bendize ao Senhor, porque o Senhor, nosso Deus, livrou Jerusalém de todas as suas tribulações. Feliz serei, se ficar um homem de minha raça para ver o esplendor de Jerusalém: suas portas serão reconstruídas com safiras e esmeraldas, seus muros serão inteiramente de pedras preciosas, Suas praças serão pavimentadas de mosaicos e rubis, e em suas ruas cantarão: Aleluia! Bendito seja Deus que te restituiu tal esplendor! Que ele reine sobre ti eternamente!
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